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quarta-feira, 11 de julho de 2018

A IGREJA E A ESCRAVIDÃO NO BRASIL COLÔNIA

Independentemente de todos os pontos, é indiscutível o tamanho do poder que a igreja tinha nesta época. Para ser objetivo, a igreja fez muito pouco para combater a escravidão que se alastrava por toda a Colônia entre 1530 e 1880. A igreja fez tão pouco, sendo tão poderosa e bem situada na sociedade.   

Não estou aqui para julgar ou condenar, somente mostrar alguns fatos correlatos desta passagem na História do Brasil. George Orwell  disse que "A história é escrita pelos vencedores". Em qualquer escrita, ocorre a manipulação onde fatos são sempre apagados  e outros exaltados. A verdade do "outro lado" sempre aparece. Cada leitor interpreta de acordo com suas convicções.  Sou adepto da Filosofia Cartesiana e do Ceticismo Metodológico. Sabe-se que a verdade é efêmera, tem dois lados, depende da ótica observada. Todo conhecimento é relativo, pois depende da realidade da pessoa que o possui e das condições do objeto que está sendo analisado. Nunca devemos aceitar como verdadeira alguma coisa sem a conhecer evidentemente como tal.


Na Bíblia há várias passagens relativas a escravos. Apesar de reconhecer a escravidão, a religião a atenuava. Essa foi basicamente a herança do mundo antigo no que diz respeito aos preceitos religiosos.

Emprega-o [o escravo] em trabalhos, como lhe convém,
e, se não obedecer, prende-o ao grilhão.
Mas não sejas muito exigente com as pessoas
e não faças nada de injusto.

Tens um só escravo? Que ele seja como tu mesmo,
pois o adquiriste com sangue.
Tens um só escravo? Trata-o como a um irmão,
pois necessitas dele como de ti mesmo (Eclo 33, 29-32).

Para início de conversa é preciso dizer que a escravidão era, no Brasil-Colônia, o fio condutor que fazia funcionar tudo: a produção do açúcar, as minas de ouro e diamantes e mais tarde o café e outras riquezas naturais.
Os negros foram introduzidos no Brasil a fim de atender às necessidades de mão-de-obra e às atividades mercantis (tráfico negreiro). O comércio de escravos africanos para o Brasil teve início nos primeiros tempos da colonização. Na África os negros eram trocados por aguardentes de cana, fumo, facões, tecidos, espelhos, etc. Os africanos que vieram para o Brasil pertenciam a uma grande variedade de etnias.
Um jesuíta do século XVII, padre Antônio Vieira, dizia: “Sem negros não há Pernambuco (isto é: produção de açúcar em Pernambuco) e sem Angola não há negros”, e, por conseguinte, “o Brasil tem seu corpo na América e sua alma na África”. Sem escravidão não podia haver nenhuma realização do projeto europeu-colonialista no Brasil. A escravidão era implícita do projeto europeu aqui, um postulado inconteste por quem quer que tivesse algum conhecimento das reais situações na produção da cana-de-açúcar, ouro, café, algodão, cacau e de tantos outros produtos que o Brasil exportava na época. Pois não podemos esquecer que o Brasil foi “descoberto” pelos portugueses para servir de terra de exportação das riquezas daqui em benefício das terras de lá, da Europa. 


Os padres e a escravidão - Como se situavam os padres diante dessa realidade? 

Por mais que se sensibilizassem diante da dor e desgraça dos africanos aqui despejados pelos navios negreiros, não tinham força nem vontade de mudar a ordem das coisas que entravam na lógica interna do sistema colonial. Seria inteiramente ilusório imaginar que os padres pudessem, na época, contestar o projeto europeu na América, pois o próprio projeto era fundamentalmente católico, realizou-se através do catolicismo, seu maior sustentáculo e base de legitimação. 
Durante todo o período colonial os padres pertenciam ao grupo mais honrado e respeitado de quantos viviam aqui, não só por causa de seu ministério sagrado, mas também por sua “limpeza de sangue”. Padre sempre era filho de família diretamente ligada à Europa, e pertencia ao pequeno círculo de brancos no meio de uma sociedade de mestiços, mulatos e negros. O Brasil mulato e negro não conheceu líderes religiosos que defendessem seus direitos e a dignidade de sua raça, como aconteceu no protestantismo norte-americano, onde pastores negros e mulatos defendiam os direitos dos fiéis de sua cultura e origem. A Igreja católica no Brasil nunca conheceu uma figura como, por exemplo, a do pastor Martin Luther King, defensor dos negros protestantes (e outros) nos Estados Unidos. Tudo isso está bem resumido nas palavras do historiador Capistrano de Abreu: “A mestiçagem com o elemento africano, ao contrário da mestiçagem com o americano, era vista com certa aversão e inabilitava para certos postos. Os mulatos não podiam receber as ordens sacras, por exemplo. Daí o desejo comum de ter um padre na família, para provar limpeza de sangue”[Capistrano de Abreu. Capítulos de história colonial, 1934] “Dentro dessa perspectiva deve ser compreendido o fato de que as quase duzentas congregações religiosas europeias masculinas e femininas que ingressaram no país entre 1880 e 1930 se recusassem a receber em seus noviciados e seminários pessoas negras ou mulatas”[José Oscar Beozzo. Escravidão negra e história da Igreja na América Latina e no Caribe. Petrópolis: Vozes, 1987] A Igreja sempre apostou na raça branca para evangelizar o Brasil. 
Já que os padres pertenciam à mais alta camada social num país baseado no trabalho escravo, inclusive no trabalho doméstico, não é de se estranhar que os padres fossem donos de escravos, senhores numa sociedade escravocrata. Eles não se distinguiam dos demais amos de escravos, fazendo com que a religião católica no Brasil-Colônia fosse uma força apagada, uma consciência adormecida. Ninguém melhor do que o grande lutador pela abolição da escravidão no Brasil nos anos 1870-1880, Joaquim Nabuco, para dizer até que ponto esse convívio diário entre padres-senhores e negros-escravos prejudicou a atuação do catolicismo enquanto movimento baseado no evangelho: “Grande número de padres possui escravos, sem que o celibato clerical o proíba. Esse contato, ou antes contágio de escravidão deu à religião entre nós o caráter materialista que ela tem, distraiu-lhe a face ideal e tirou-lhe toda possibilidade de desempenhar na vida social do país o papel de força consciente”[ José Oscar Beozzo. Escravidão negra e história da Igreja na América Latina e no Caribe. Petrópolis: Vozes, 1987]. 
O historiador Ronaldo Vainfas, em seu livro intitulado - Antônio Vieira: Jesuíta do Rei [Companhia das Letras],  relata que no caso dos índios, escravidão e catequese se opunham. No caso dos africanos, complementavam-se. Embora fosse uma contradição insolúvel do ponto de vista moral, contornava-se o problema com uma sólida base teológica. A escravidão era má, porém justa e necessária para a ordem do mundo. Para os índios, buscar a salvação e não permitir a escravidão deles. Para os negros, cativeiro. A Igreja vai buscar referências em São Tomás de Aquino, desde, portanto, o século XIII. No decorrer do século XV, construiu-se a ideia de que os africanos em particular eram os mais vocacionados para a escravidão por descenderem de Cam, o filho maldito de Noé, cuja linhagem fora condenada ao cativeiro. Cam teria sido o povoador do continente africano. Os índios, que nada tinham a ver com Cam, deviam ser preservados do cativeiro. “Contradição moral e ideológica. Coerência teológica.”É da ideia quanto à escravidão africana, tão solene e fortemente defendida pela Igreja Católica e pelo Papa, sob a alegação de que o cativeiro era uma espécie de benção para os pretos. Há um capítulo denominado Paraíso dos Pretos, tratando exclusivamente dessa visão. Mas, como a escravidão era o paraíso dos pretos, então, todo esse inferno se converterá em paraíso, como diz Vieira em seu sermão, um documento essencial para que se entenda o espírito dominante de então e para que se esclareça o papel do jesuíta como um escravista, como um sólido ideólogo da escravidão. Padre Antônio Vieira, foi o maior defensor da escravidão africana no Brasil até o fim da vida. 
De acordo com uma pesquisa feita pela Professora Maria Luíza Marcílio, uma forma particularmente pronunciada de posse de escravos se realizava nas fazendas dos frades. Os religiosos, sobretudo carmelitas, beneditinos e franciscanos, mantiveram grandes fazendas no interior do Brasil. Assim eram conhecidas as fazendas dos jesuítas no Piauí, as dos beneditinos no Cariri Novo (Ceará), as dos carmelitas na região de São Paulo. Em São Paulo, por exemplo, os maiores fazendeiros locais tinham de 40 a 50 escravos, enquanto os carmelitas controlavam nada menos que 436 escravos. Por vezes coloca-se a pergunta: os escravos dos padres (ou dos “santos”, pois os padres sempre dedicavam suas fazendas a algum santo, e os escravos passavam então a ser denominados “dos Santos”) passavam melhor do que os outros? 
Nesse sentido pode-se dizer que os escravos “dos santos” passavam melhor, não no sentido que os frades tratassem melhor seus escravos, mas no sentido que as fazendas dos frades estavam menos integradas no circuito da produção e comercialização da Colônia. Eram feudos pouco produtivos. A lógica que comandava a vida nas fazendas dos frades era a de uma vida privilegiada e cômoda.. Os frades ao mesmo tempo falam da salvação no céu e da salvação das almas dos escravos mas viviam comodamente do trabalho dos mesmos escravos. 
Em uma carta enviada ao rei D. João III em 1551, o padre Manuel da Nóbrega  foi explícito em pedir escravos para o Colégio da Bahia: "(...) Mande dar alguns escravos de Guiné à Casa [Colégio da Bahia], para fazerem mantimentos, porque a terra é tão fértil, que facilmente se manterão e vestirão muitos meninos, se tiverem alguns escravos que façam roças de mantimentos e algodoais (...)." (Vasconcelos, Pe. Simão de S. J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2 2ª ed.)
Outro exemplo pode ser encontrado na sugestão feita pelo padre Antônio Vieira, tendo em vista a queixa persistente dos moradores do Maranhão, de que a catequese de indígenas resultava em falta de mão de obra para as lavouras:
"(...) Não podem haver ao presente outros meios mais certos e efetivos, que os de meter no dito Estado [do Maranhão] escravos de Angola (...).Comprem e remetam ao Maranhão duzentos escravos, que devem ser homens e mulheres em ordem à propagação.
Por trás desses dramas pessoais se desenha a imagem de uma Igreja que necessita da aliança com os sistemas dominantes para poder sobreviver. Se a Igreja católica tivesse tomado posição oficial contra a escravidão, ela certamente não teria conseguido sobreviver na forma de “igreja grande”. 
A história guarda a memória de diversos padres que tentaram mudar o rumo das coisas, propondo mudanças substanciais na organização da sociedade brasileira, mas a mesma história nos ensina qual foi o destino desses padres-profetas: expulsão da colônia, discriminação e finalmente, a não realização de seus intentos.
Padre Gonçalo Leite (1546-1603) veio ao Brasil, em 1572, com 26 anos. Foi o primeiro professor de filosofia deste país. Durante os catorze anos de sua permanência aqui não deixou de defender os indígenas. Foi por causa dessa postura que foi obrigado a voltar a Portugal em 1586. Sua permanência no Brasil tornou-se insuportável, e mesmo em Portugal teve dificuldades. Após ter voltado a Lisboa, escreveu uma carta ao Geral da Companhia de Jesus: “Bem se podem persuadir os que vão ao Brasil que não vão a salvar almas, mas a condenar as suas. Sabe Deus com quanta dor de coração isto escrevo, porque vejo os nossos padres confessar homicidas e roubadores da liberdade, fazenda e suor alheio, sem restituição do passado nem remédio dos males futuros, que da mesma sorte cada dia cometem”[Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil, vol.2]. 
Padre Miguel Garcia (1550-1614) era jovem jesuíta espanhol quando veio à Bahia em 1576 para lecionar teologia no colégio de Salvador. Era o primeiro professor de teologia do Brasil. Percebeu logo que a convivência dos próprios jesuítas com a escravidão tirou da Companhia de Jesus “o papel de uma força consciente”, como diria mais tarde Joaquim Nabuco. Ele propunha, de forma bem prática, recusar a absolvição sacramental aos que confessavam guardar escravos em casa, vivendo às custas do trabalho escravo. A proposta suscitou escândalo, pois o próprio colégio jesuítico se mantinha graças ao trabalho escravo realizado por “peças de Guiné” (a expressão é do jesuíta Nóbrega, colega de Garcia). Veio o visitador da Companhia de Jesus, padre Cristóvão de Gouveia, averiguar a questão. 

Observa-se que tanto o texto de Miguel Garcia como o de Gonçalo Leite aplicam-se em primeiro lugar à defesa dos índios, e não aos africanos, Mas mesmo assim percebe-se nos dois jesuítas um movimento em prol da pessoa humana acima dos interesses da religião ou da própria corporação religiosa. 

Manuel Ribeiro da Rocha, terceiro padre que se preocupou com a escravatura no Brasil, que em 1758 publicou um livro em Lisboa, sob estranho título: “Ethíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado”. Um dos livros mais abertos e revolucionários já escritos sobre o Brasil. Ribeiro da Rocha diz sem rodeios que o tráfico negreiro nada mais é do que pirataria, e como tal deve ser combatido pelas autoridades. Continua dizendo que os que comercializam negros andam em estado de condenação. Propõe uma lei segundo a qual os negros possam resgatar sua liberdade após cinco anos de serviço, casar em toda liberdade, receber sepultura eclesiástica como os brancos. Segundo uma comunicação feita por Frei Hugo Fragoso Ribeiro da Rocha seguia as ideias iluministas de Montesquieu, onde no século XX foi criado a [Declaração Universal dos Direitos Humanos - 1948]. Mas mesmo assim conseguiu espaço aberto para colocar as premissas de uma teologia da libertação a partir da realidade escrava, tendo em vista as leis em vigor. Ribeiro da Rocha merece ser mais conhecido.


Enfim....
A Igreja católica carrega consigo até hoje uma história pesada de conivência e convivência com a escravidão. Ela não suporta de bom grado o julgamento da história e procura defender-se. Enquanto "igreja grande” tem que compactuar com os poderes deste mundo para conseguir sobreviver. Tende a preferir a quantidade de seus membros sobre a qualidade. Cabe a cada um de nós fazer a ligação entre a luta pelos oprimidos, vinculado ao poder do Estado e do evangelho. É necessário, sim, reconhecer o passado com realismo e veracidade. Mas não se pode esquecer o presente ainda trágico, que a humanidade vive, trazendo até hoje a chaga da escravatura, embora dissimulada ou elegantemente rotulada.



Referência

http://www.vidapastoral.com.br/artigos/ministerio-presbiteral/padres-e-escravos-no-brasil-colonia/#_ftnref7
http://www.scielo.br/pdf/his/v34n2/0101-9074-his-34-02-00146.pdf
https://www.cartacapital.com.br/politica/antonio-vieira-e-o-doce-inferno-dos-negros
https://www.ricardocosta.com/artigo/igreja-catolica-e-escravidao
http://www.presbiteros.org.br/a-igreja-e-a-escravidao-no-brasil-2/
https://martaiansen.blogspot.com/2017/03/escravos-africanos-em-lugar-de-indigenas.html
https://martaiansen.blogspot.com/2015/03/a-catequese-como-justificativa-para-a-escravidao-no-brasil-colonial.html


5 comentários:

  1. Prof. Vou rezar pro senhor. Adianta ter uma mente privilegiada e esquecer de Deus? Lembre q sua inteligencia foi uma dádiva do nosso senhor. Misericórdia.

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  2. Amélia vamos fazer uma corrente divina para que Nosso Senhor ilumine. Como pode uma pessoa que demostra sabedoria não ter Deus no coração. Perdão por este pecador

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  3. Kkkkkkk ESse povo é uma festa. Carolas, este texto representa discernimento, livre arbítrio. O prof, em nenhum momento foi desrespeitoso com a crença ou fé. Sou católico e não me senti prejudicado ou difamafo pelo artigo. Muito pelo contrário ele expôs tb alguns padres q lutaram contra a escravidão. Sabemos que em qq lugar temos proffionais bons e ruins. Beijos de luz

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  4. Artigo interessante. Sempre me perguntei porquê a igreja foi ou é conivente com a escravidão? O poder sempre corrompe as instituições. Quantos escravos religiosos, políticos ou sociais existem no Brasil e no mundo? Como o texto diz, a verdade sempre acaba aparecendo. Escravos de movimentos políticos e sociais no Brasil. Analise o caso do prédio que caiu em SP, as invasões do MTST , os mega empresários rurais, as "madames", da politica do PT, PSTU, PCdoB, PCB, PP. Por tudo isto a educação no país é vergonhosa. Se a religião que prega a salvação; escraviza! Em quem devemos acreditar? Em nós mesmos e pronto. A nossa verdade é a unica que vale, independente dos olhares de terceiros. Parabéns professor pelo EXCELENTE artigo que trás luz e esclarecimentos sobre a história.

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  5. A religião tem um grande impacto na vida de um adepto, de um fiel. Um líder religioso é sem duvida um déspota. No Brasil desenvolve a ideia de que “futebol, política e religião não se discutem!” dada à diversidade de pensamentos, de opiniões, de opções sociais, ideológicas. Mas está totalmente errado, temos sim que discutir, criticar, expor as ideias. Professor, sou doutorando em História das Religiões. Achei seu artigo muito pertinente, levou-me a pensar em incluir um capitulo de minha tese sobre esta problemática. Felicito pelo texto, precisamos de mentes abertas no país.

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