Eles voam com as mãos, enxergam com os ouvidos e dormem de cabeça para baixo. Com você, os morcegos: vampiros alados, raposas-voadoras, mamíferos como nós.
O traço mais remoto da separação da linhagem humana dos demais
primatas tem entre 5 e 6 milhões de anos. Os morcegos chegaram bem antes. Dos
mamíferos que começaram a ocupar o planeta após a extinção dos grandes
lagartos, que dominaram o mundo até 65 milhões de anos atrás, eles estão entre
os mais antigos. O fóssil de morcego mais velho já encontrado tem cerca de 50
milhões de anos e mostra que os espécimes atuais se parecem muito com seu
antepassado distante. A capacidade de adaptação desses mamíferos levou-os a quase todos
os lugares do planeta. Eles só não vivem em lugares muito frios. No total, são
cerca de 1000 espécies identificadas. Ou seja: aproximadamente um em cada
quatro mamíferos é morcego. No Brasil, há 138 espécies, espalhadas por todo o
país. Há morcegos pequenos e leves, grandes e pesados, pretos, marrons e até
vermelhos.
A maior peculiaridade desses animais, comum a todas as espécies, é
sua capacidade de voar. O morcego é o único mamífero que se locomove pelo ar. E
para isso ele utiliza as mãos, que a evolução transformou em asas. A estrutura
dos ossos da mão do morcego é parecida com a da mão humana. A principal
diferença é a proporção. Nos morcegos, as falanges são finas e compridas, quase
do tamanho do corpo. Os dedos são unidos por uma membrana elástica, que também
é ligada às pernas. Para voar, basta afastar os dedos e mover os braços para
cima e para baixo. Mas a operação não é simples. De fato, ela requer muita
energia. Para contornar esse problema, o morcego normalmente alça voo a partir
de um ponto mais alto, cai alguns centímetros e, após ganhar velocidade, retoma
a altitude.
A membrana lisa e contínua que forma suas asas impede a passagem
de ar, ao contrário do que ocorre com as penas das aves, que são aerodinâmicas.
Isso, aliado à enorme flexibilidade das asas articuladas, permite manobras
radicais. Um leve ajuste nos dedos é capaz de gerar ângulos variáveis, fazendo
com que o vôo do morcego seja muito mais dinâmico que o de qualquer ave.
Algumas espécies atingem velocidades de até 50 km/h.
Seu jeito de voar ajuda a explicar outra peculiaridade: o hábito
de ficar de cabeça para baixo. Pousados dessa forma, os morcegos facilitam o
início de seu vôo: basta deixar a gravidade atuar e iniciar o movimento das
asas. Sua pelagem é vasta e pesada e eles não possuem as estruturas adaptadas
ao vôo que as aves têm – ossos mais leves e penas impermeáveis –, por isso
precisam de toda a energia disponível para alçar vôo.
Outra razão para ficarem de ponta-cabeça é que a transformação de
seus membros superiores em asas diminuiu-lhes a capacidade de ficarem eretos e
suas pernas e pés não têm força para agüentar longos percursos. Além disso, de
cabeça para baixo os morcegos têm mais equilíbrio e, fechando as asas,
conseguem se proteger melhor. Para dormir nessa posição, eles possuem um
eficiente sistema que trava os tendões das patas traseiras na base em que
tiverem atracado para tirar uma soneca.
Morcegos são cegos, certo? Errado. Algumas espécies enxergam até
dez vezes melhor que os seres humanos. No entanto, a imensa maioria vê o mundo
em preto-e-branco, o que não é exatamente um problema para um animal que
tem hábitos noturnos. De fato, a visão dos morcegos é perfeitamente adaptada
aos ambientes com pouca luminosidade. Além disso, eles contam com uma ajudinha ainda
mais sofisticada para se orientar no escuro: a ecolocalização, um sistema que
funciona como um biossonar. O morcego emite ondas sonoras em freqüências
inaudíveis para o ser humano que, ao encontrar um obstáculo, retornam e são
captadas por seu ouvido especial. Pelo sinal reverberado, o morcego consegue
medir a que distância está o objeto, qual seu tamanho, velocidade e até
detalhes de sua textura.
Das quase 1000 espécies de morcegos, apenas três são hematófagas,
isto é, alimentam-se exclusivamente de sangue. Os temidos morcegos-vampiros são
pequenos – o maior deles tem apenas 10 centímetros – e vivem na América do Sul,
inclusive no Brasil. Ou seja: a maioria dos morcegos come frutas e insetos e
nada tem a ver com Bela Lugosi e Christopher Lee. Segundo explica o biólogo
Marco Aurélio Ribeiro de Mello, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
duas espécies bebem exclusivamente sangue de aves: Diphylla ecaudata e Diaemus
youngii. A terceira espécie – Desmodus rotundus, conhecido como morcego-vampiro
comum – alimenta-se do sangue de aves e mamíferos. Ataques a seres humanos não
são habituais, contudo tem havido relatos recentes de episódios assim em
vilarejos remotos no Pará e no Amazonas. “São regiões onde a natureza foi
drasticamente alterada.
Na ausência de presas selvagens ou gado, os hematófagos atacam
animais domésticos e seres humanos”, explica o professor Wilson Uieda, biólogo
da Universidade Estadual Paulista (Unesp), reconhecido como uma das maiores
autoridades nos morcegos-vampiros da fauna brasileira.
Segundo ele, os hematófagos têm especial preferência pelos pés das vítimas: os
dedos são o alvo escolhido em 90% dos casos. “Na região de Bacarena (PA), dez
pessoas de uma mesma família foram atacadas”, relatou Uieda, poucos dias após
voltar da região, onde orienta as comunidades afetadas pela presença do
vampiro. Segundo ele, a quantidade diária de sangue consumida pelos morcegos é
muito pequena, variando de 15 a 20 mililitros – cerca de duas colheres de sopa.
Por isso, os ataques só são perigosos quando o animal está
infectado com raiva, a única doença transmitida pelos vampiros. “O último caso
de raiva transmitido por um hematófago, na região, foi registrado em 1991 e
levou a vítima à morte”, conta o especialista.
O morcego-vampiro consegue perceber o calor da circulação
sanguínea sob a pele das vítimas e usa este dom, chamado de termorrecepção,
para mapear os vasos mais próximos da pele. Por isso sua mordida é cirúrgica,
superficial e quase indolor. Ele usa a língua dobrada como um canudinho para
colher o fluido até se saciar.
Totalmente adaptados ao alimento líquido, eles têm menos dentes
que outros, com molares e pré-molares pouco desenvolvidos, abrindo espaço para
grandes e afiados incisivos e caninos. É comum que os vampiros voltem a atacar
a mesma vítima, usando a mesma ferida, para poupar o trabalho da mordida.
Em sua saliva há uma substância anticoagulante, que faz a ferida
continuar sangrando além do tempo normal.
Essa substância, a desmoteplase, é atualmente alvo de inúmeras
pesquisas justamente por suas propriedades anticoagulantes. De acordo com um
artigo publicado em julho na revista inglesa New Scientist, o laboratório
alemão Paion, baseado em Berlim, isolou a substância e a está testando no
tratamento de coágulos sanguíneos que se formam após ataques cardíacos e derrames
em seres humanos. Segundo o artigo, há estudos sendo conduzidos com o objetivo
de sintetizar a desmoteplase para lançá-la comercialmente.
As fezes do morcego, quando acumuladas em grande quantidade em
locais úmidos e abafados, podem produzir um fungo chamado histoplasma, um pó
branco e tóxico que, quando inalado, causa uma doença respiratória grave. A
histoplasmose pode ser controlada, mas não tem cura. A diversidade entre as espécies de morcegos é muito grande, mas há
características comuns a todas. A reprodução, por exemplo. A maior parte das
fêmeas tem apenas um filhote por ninhada. Os bebês-morcegos nascem sem pêlos e
totalmente dependentes da mãe. Mamam por períodos que variam de duas a quatro
semanas e daí em diante estão prontos para a vida adulta que pode ser
relativamente longa, quando comparada à de outros mamíferos do mesmo porte. Há
morcegos que chegam a viver até 30 anos. Os morcegos costumam ser animais gregários, mas não são fiéis a um
único grupo. Quando estão prestes a parir, as fêmeas se concentram em um mesmo
abrigo, onde permanecem juntas até seus filhotes estarem aptos a buscar o
próprio alimento. Em algumas espécies hematófagas, as fêmeas que não conseguem
se alimentar são ajudadas por outras, que trazem comida para elas. Os hábitos alimentares dos morcegos são os mais diversos dentro de
uma única ordem de mamíferos. Há um numeroso contingente de devoradores de
insetos (insetívoros), amantes de frutas (frugívoros), apaixonados por néctar
(nectarívoros), gourmets de peixes (piscívoros), apreciadores de pequenos
vertebrados (carnívoros), glutões que comem de tudo um pouco, como frutos,
flores e pequenos vertebrados (onívoros), e os já citados hematófagos. Ah, sim,
na luta pela sobrevivência, vale tudo: há morcegos que comem outros morcegos. Entre seus predadores naturais estão as cobras e os gambás. Mas os
gatos domésticos, quem diria, costumam ser seus assassinos mais comuns.
Os morcegos são animais noturnos. Normalmente, saem para se
alimentar logo após o pôr-do-sol e se a comilança for boa podem ser vistos
ainda ao alvorecer. Moram em árvores, cavernas, grutas e preferem locais
quentes e relativamente úmidos. O morcego não constrói ninhos. As espécies que vivem em lugares mais frios costumam hibernar,
quando a oferta de alimentos é pequena. Elas se recolhem aos abrigos e, sempre
de cabeça para baixo, são capazes de passar dois ou três meses dormindo. Para
economizar energia, reduzem a temperatura corporal para cerca de 12 ºC (o
normal é 36 ºC) e seus batimentos cardíacos caem para 25 por minuto – em vôo o
coração do morcego chega a bater 1000 vezes por minuto, o equivalente aos
motores de 1000 rpm que equipam pequenas lanchas.
Guloso, um único morcego é capaz de ingerir mais de 3000 insetos e
aumentar seu peso em até 40%, apó uma boa refeição. Achou pouco? Então que tal
isso: os 20 milhões de morcegos-de-cauda-livre do México consomem 250 toneladas
de insetos em um único banquete. Esse tremendo apetite é vital para o
equilíbrio dos ecossistemas. Os morcegos são os maiores comedores de insetos do
planeta, contribuindo para o controle de populações de moscas e mosquitos. Além
disso, eles são absolutamente indispensáveis para espalhar sementes e polinizar
vegetais. Um estudo do Jardim Botânico de Nova York afirma que sem os morcegos
a floresta tropical da Guiana Francesa seria muito diferente do que é hoje.
O desmatamento, a utilização de pesticidas em áreas rurais e a
matança indiscriminada são fatores que já ameaçam algumas espécies de extinção.
Só no Brasil, segundo o Ibama, nove delas correm risco de desaparecer. Nos
Estados Unidos, o panorama é igualmente sombrio. Segundo a Bat Conservation
International, organização não-governamental sediada no Texas (EUA), alguns
morcegos norte-americanos estão entre os animais que apresentam maior perigo de
extinção no mundo, atualmente. Parece que a espécie humana tem sido injusta com seus primos
morcegos. Primeiro, demonizando-os. Agora, varrendo-os do mapa.
O segredo do morcego
Ratos de asas. Cegos. Sujos e doentes. Pobres morcegos. Seus
hábitos noturnos, a vida nas cavernas, a aversão à luz fizeram com que as
pessoas associassem-nos ao mal. Dos vários mitos envolvendo morcegos, o mais
difundido é sua associação com seres maléficos e com o próprio diabo. Na
Europa, antes mesmo dos primeiros relatos de morcegos sugadores de sangue
chegarem da América, já se difundiam lendas sobre vampiros e demônios, sempre
representados com asas de morcegos. Na época, os pobres bichinhos ocupavam
papel principal em rituais de bruxaria, onde era comum tomar seu sangue para
selar um pacto com o sobrenatural. Em muitas culturas da antiguidade, no entanto, a imagem do morcego
não era tão ruim. Nas fábulas gregas, eles eram descritos como espertos e
medrosos. Entre os maias, eram adorados com o nome de Z’otz. No mito da Quichémaia
um morcego de cabeça cortada aparece como deus do mundo inferior. Tribos
nativas norte-americanas os veneravam como entidades protetoras. Ainda hoje, em algumas regiões da Escócia, o valor de casas e
castelos aumenta se há morcegos morando na propriedade. Na África e no Sudeste
Asiático, eles são caçados pelos humanos, que apreciam o sabor dos peludos
bichos e os consideram uma iguaria. Já na China, o morcego é símbolo de
felicidade. O som da palavra chinesa que designa morcego – FU – também significa
riqueza. Lá, cinco morcegos juntos representam longevidade, saúde, fortuna,
amor e morte natural. Entre os aborígenes australianos, morcegos são símbolos
de fertilidade.
Para saber mais
Bats, Phil Richardson, Smithsonian Institution Press, EUA
www.nybg.org/bsci/french_guiana/bat_disp.htm/
www.batcon.org
www.pasteur.saude.gov.b
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