É muita gente, todos querendo consumir mais, com tecnologias cada vez mais poderosas, tanto de extrair como de transformar e contaminar. Esta mistura é tóxica, a não ser que aprendamos a nos administrar de maneira coerente com as necessidades e possibilidades reais.
Um bom ponto de partida é o antropoceno, conceito que ajuda a entender a amplitude do impacto do ser humano, este bípede irrequieto e capaz tanto de criar como de destruir, sobre todo o planeta.
O relatório de 2014 do WWF resume
o drama em uma frase: “Atualmente, a população global está cortando as árvores
mais rápido do que podem crescer de novo, capturando peixes mais rápido do que
os oceanos conseguem recompor os estoques, bombeando a água dos rios e dos
aquíferos mais rápido do que as chuvas conseguem preenchê-los e emitindo mais
dióxido de carbono que aquece o clima do que os oceanos e as florestas podem
absorver. O drama da água está diretamente associado à desigualdade e ao modelo
geral de desenvolvimento elitista que adotamos. De tanto sucesso como espécie,
estamos ameaçando não só a vida do planeta como evidentemente a nós mesmos.
Esta verdade elementar, de que a vida não pode se resumir a cada um arrancar o
quanto pode, mas que precisamos, numa inversão radical, pensar em quanto
contribuímos para o bem-estar de todos e para a saúde da terra, resume a
inversão de valores civilizatórios que temos pela frente. Uma boa imagem, é que
nesta pequena espaçonave terra não há passageiros, somos todos tripulantes.
Um estudo da situação da água
doce no planeta não pode, neste sentido, resumir-se aos aspectos técnicos. Há
uma mudança cultural no horizonte, e esta depende vitalmente de uma população
informada sobre as ameaças. Sobre as disponibilidades futuras
da água há poucas dúvidas quanto à situação cada vez mais dramática que
enfrentamos. As reservas de água do planeta são constituídas por 98% de água
salgada e 2% de água doce. Destes 2%, 87% estão bloqueados nas calotas polares
e geleiras, e a maior parte do que resta se encontra em águas subterrâneas, na
atmosfera e nos organismos vivos. As reservas de água útil são portanto
relativamente limitadas, e em muitas regiões do mundo se tornaram escassas. A escassez nos obriga a
considerar a lógica econômica de água e saneamento vistos como setor econômico,
diretamente impactado pelo processo universal de urbanização. No campo
frequentemente o poço ou o rio resolvem, e a natureza absorve os resíduos. Na
cidade o ciclo da água constitui uma indústria. E tratando-se de um recurso
vital no sentido mais forte da palavra, a sua monopolização privada pode gerar
grandes lucros e maiores dramas. Para uma empresa privada que tem um contrato
de gestão de água e esgotos, aumentar o consumo constitui fonte de lucro, e
jogar esgotos no rio e no mar equivale a transferir os custos para a sociedade.
As externalidades aqui são fortíssimas pelos impactos que gera na saúde e no desconforto
da população.
Na lógica do lucro, é a escassez
que faz subir os preços. Um bem público e amplamente disponível como o ar pode
ser vital mas não gera lucros. Quando temos um setor público bem administrado
que nos fornece água segura na torneira, não compramos água em garrafas no
supermercado. E um bem vital, quando se torna privado e passa a obedecer à
lógica perfeitamente legal de maximização do lucro, só encontrará limites aos
preços e à contaminação ambiental nas explosões políticas, nas revoltas que já
foram vistas em tantas cidades. Em termos econômicos, a apropriação privada de
um bem vital e de oferta limitada não faz sentido. Coloca-se portanto o desafio
do desenho da regulação e da gestão do bem mais importante para a vida e que
está se tornando escasso.
Além disso a água que utilizamos
recolhe os defensivos químicos da agricultura moderna, os resíduos industriais
e os esgotos domésticos, e se mistura às reservas existentes, gerando um efeito
multiplicador de poluição de uma massa de água incomparavelmente superior ao
volume de consumo. Neste sentido, a
destruição do recurso pode constituir um problema maior do que o seu consumo, o
que reforça o absurdo da situação.
Tocamos aqui um ponto essencial:
um bem comum, distribuído de maneira tão desigual no planeta e nos países, tão
vital para a sobrevivência de todos, não pode ser gerido sem uma participação
negociada e minimamente equilibrada dos diversos usuários. Se a água for vista
apenas como um produto oferecido por um produtor e que um consumidor compra,
teremos um poder desmesurado de quem controla a oferta, e do lado da demanda
prevalecerá a lei do mais forte. Trata-se de um bem comum cuja gestão funciona
de maneira adequada apenas onde se construíram pactos entre os diversos agentes
interessados, tanto em termos de distribuição como de restrições sistêmicas de
consumo segundo as circunstâncias. É uma área onde estamos condenados a
aprender a colaborar, planejar e construir capital social. E o homo sapiens
nunca foi um grande construtor de consensos.
A frequente privatização, que
privilegia a venda de água aos grandes consumidores, na linha das economias de
escala, e não pensa o recurso como bem comum, apenas agrava os desequilíbrios
herdados de políticas públicas controladas por elites.
Todo investimento em capital
coletivo, necessariamente apoiado em amplas iniciativas públicas, é apresentado
como gasto, como inchaço da máquina pública e assim por diante. E os impostos
correspondentes, como é óbvio, como um crime contra a humanidade. Ao nos
espelharmos na água, o que aparece é a burrice de uma construção social
desequilibrada. A água é, antes de tudo, um problema político e social, mais do
que técnico e econômico.
- Primeiro, trata-se de um setor extremamente capilar, no sentido de dever chegar a cada residência, cada empresa, cada comércio, cada unidade agrícola.
- Segundo, trata-se de um setor que funciona como sistema, onde a água usada de um usuário pode se tornar a fonte de poluição para outro, onde a poluição do solo pode destruir as reservas de água de toda uma região, onde uma urbanização mal planejada pode destruir áreas de mananciais e a sobrevivência de outras regiões.
- Em terceiro lugar, trata-se de interesses difusos, em que a disponibilidade da água é vista como algo óbvio e natural. As pessoas têm dificuldades de entender como uma ação simples como a de jogar um objeto na rua ou no córrego, multiplicada por milhões de habitantes, torna-se um drama social e econômico.
Pelos desafios que apresenta, a
problemática da água tanto pode evoluir para situações catastróficas como pode
se tornar um vetor das formas mais modernas de gestão sistêmica, indispensáveis
para um desenvolvimento minimamente sustentável no longo prazo. Alguns
pontos-chave a se levar em consideração poderiam aqui ser os seguintes:
- Desenvolver a capacidade de planejamento
- Privilegiar as ações preventivas
- Privilegiar o enfoque integrado
- Privilegiar os espaços locais de ação
- Desenvolver parcerias
- Mudança cultural
O setor de água e saneamento, no
sentido amplo, não padece da falta de conhecimentos técnicos, trata-se, antes
de tudo, da democratização dos processos de decisão.
texto na integra, acesse O DRAMA DA ÁGUA
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