Os ecologistas se enganam se creem poder abrir mão de uma crítica marxiana do capitalismo. Uma ecologia que não leve em conta a relação entre "produtivismo" e lógica do lucro está destinada ao fracasso, ou pior, à sua recuperação pelo sistema.
A grande contribuição da ecologia foi e continua sendo nos
fazer tomar consciência dos perigos que ameaçam o planeta como consequência do
atual modelo de produção e consumo. O crescimento exponencial das agressões ao
meio ambiente e a ameaça crescente de uma ruptura do equilíbrio ecológico
configuram um quadro catastrófico que coloca em questão a própria sobrevivência
da vida humana. Estamos diante de uma crise de civilização que exige mudanças
radicais.Os ecologistas se enganam se creem poder abrir mão da
crítica marxiana do capitalismo: uma ecologia que não leve em conta a relação
entre “produtivismo” e lógica do lucro está destinada ao fracasso – ou pior, à
sua recuperação pelo sistema. Os exemplos não faltam... A ausência de uma postura
anticapitalista coerente levou a maior parte dos partidos verde europeus –
França, Alemanha, Itália, Bélgica – a tornar-se simples parceiro
“ecoreformista” da gestão social-liberal do capitalismo pelos governos de
centro-esquerda. Considerando os trabalhadores irremediavelmente destinados
ao produtivismo, alguns ecologistas ignoram/descartam o movimento operário e
inscrevem em suas bandeiras: “nem esquerda, nem direita”. Ex-marxistas convertidos à ecologia declaram apressadamente
“adeus à classe operária” (André Gorz), enquanto outros autores (Alain Lipietz)
insistem na necessidade de abandonar o “vermelho” – isto é, o marxismo ou o
socialismo – para aderir ao “verde”, novo paradigma que trará uma resposta a
todos os problemas econômicos e sociais.
O ECOSSOCIALISMO
O que é então o ecossocialismo? Trata-se de uma corrente de
pensamento e ação ecológicos que toma como suas as aquisições fundamentais do
marxismo – ao mesmo tempo que se livra de seus entulhos produtivistas. Para os ecossocialistas a lógica do mercado e
do lucro – bem como aquela do defunto do autoritarismo burocrático, o
“socialismo real” – são incompatíveis com as exigências de preservação do meio
ambiente. Ao mesmo tempo em que criticam a ideologia das correntes dominantes
do movimento operário, eles sabem que os trabalhadores e suas organizações são
uma força essencial para uma transformação radical do sistema e para a
construção de uma nova sociedade socialista e ecológica. Essa corrente está longe de ser politicamente homogênea, mas
a maior parte de seus representantes compartilha alguns temas. Rompendo com a
ideologia produtivista do progresso – em sua forma capitalista e/ou burocrática
– e oposta à expansão ao infinito de um modo de produção e consumo destruidor
da natureza, o ecossocialismo representa uma tentativa original de articular as
ideias fundamentais do socialismo marxista com as contribuições da crítica
ecológica.
O RACIOCÍNIO ECOSSOCIALISTA SE APOIA EM DOIS ARGUMENTOS
ESSENCIAIS:
1) o modo de produção e consumo
atual dos países capitalistas avançados, fundado sobre uma lógica de
acumulação ilimitada (do capital, dos lucros, das mercadorias), desperdício de
recursos, consumo ostentatório e destruição acelerada do meio ambiente, não
pode de forma alguma ser estendido para o conjunto do planeta, sob pena de uma
crise ecológica maior. Segundo cálculos recentes, se o consumo médio de energia
dos EUA fosse generalizado para o conjunto da população mundial, as reservas
conhecidas de petróleo seriam esgotadas em 19 dias. Esse sistema está,
portanto, necessariamente fundado na manutenção e agravamento da desigualdade
entre o Norte e o Sul;
2) de qualquer maneira, a continuidade
do “progresso” capitalista e a expansão da civilização fundada na economia de
mercado – até mesmo sob esta forma brutalmente desigual – ameaça
diretamente, a médio prazo (toda previsão seria arriscada), a própria
sobrevivência da espécie humana, em especial por causa das consequências
catastróficas da mudança climática.
A racionalidade limitada do mercado capitalista, com seu
cálculo imediatista das perdas e lucros, é intrinsecamente contraditória com
uma racionalidade ecológica, que leve em conta a temporalidade longa dos ciclos
naturais.
Não se trata de opor os “maus” capitalistas ecocidas aos “bons”
capitalistas verdes: é o próprio sistema, fundado na competição impiedosa, nas
exigências de rentabilidade, na corrida pelo lucro rápido, que é destruidor dos
equilíbrios naturais. O pretenso capitalismo verde não passa de uma manobra
publicitária, uma etiqueta buscando vender uma mercadoria, ou, no melhor dos
casos, uma iniciativa local equivalente a uma gota-d’água sobre o solo árido do
deserto capitalista. Contra o fetichismo da mercadoria e a autonomização retificada
da economia pelo neoliberalismo, o que está em jogo no futuro para os
ecossocialistas é pôr em prática uma “economia moral” no sentido dado por
Edward P. Thompson a este termo, isto é, uma política econômica fundada em
critérios não monetários e extraeconômicos: em outras palavras, a reconciliação
do econômico no ecológico, no social e no político.
As reformas parciais são totalmente insuficientes: é preciso
substituir a microrracionalidade do lucro pela macrorracionalidade social e
ecológica, algo que exige uma verdadeira mudança de civilização . Isso é
impossível sem uma profunda reorientação tecnológica, visando a substituição
das fontes atuais de energia por outras não poluentes e renováveis, como a
eólica ou solar . A primeira questão colocada é, portanto, a do controle sobre
os meios de produção e, principalmente, sobre as decisões de investimento e
transformação tecnológica, que devem ser arrancados dos bancos e empresas
capitalistas para tornarem-se um bem comum da sociedade. Certamente, a mudança radical se relaciona não só com a
produção, mas também com o consumo. Entretanto, o problema da civilização
burguês-industrial não é – como muitas vezes os ecologistas argumentam – “o
consumo excessivo” pela população e a solução não é uma “limitação” geral do
consumo, sobretudo nos países capitalistas avançados. É o tipo de consumo
atual, fundado na ostentação, no desperdício, na alienação mercantil, na
obsessão acumuladora, que deve ser colocado em questão.
ECOLOGIA E ALTERMUNDIALISMO
Sim, nos responderão, é simpática essa utopia, mas por
enquanto é preciso ficar de braços cruzados? Certamente não! É preciso lutar
por cada avanço, cada medida de regulamentação, cada ação de defesa do meio ambiente.
Cada quilômetro de estrada bloqueado, cada medida favorável aos transportes
coletivos é importante; não somente porque retarda a corrida em direção ao
abismo, mas porque permite às pessoas, aos trabalhadores, aos indivíduos se
organizar, lutar e tomar consciência do que está em jogo nesse combate, de
compreender, por sua experiência coletiva, a falência do sistema capitalista e
a necessidade de uma mudança de civilização. É nesse espírito que as forças mais ativas da ecologia estão
engajadas, desde o início, no movimento altermundialista. Tal engajamento
corresponde à tomada de consciência de que os grandes embates da crise
ecológica são planetários e, portanto, só podem ser enfrentados por uma
démarche resolutamente cosmopolítica, supranacional, mundial. O movimento
altermundialista é sem dúvida o mais importante fenômeno de resistência
antisistêmica do início do século XXI.
Essa vasta nebulosa, espécie de “movimento dos movimentos”
que se manifesta de forma visível nos Fóruns Sociais – regionais e mundiais – e
nas grandes manifestações de protesto – contra a Organização Mundial do
Comércio (OMC), o G8 ou a guerra imperial no Iraque – não corresponde às formas
habituais de ação social ou política. Ampla rede descentralizada, ele é
múltiplo, diverso e heterogêneo, associando sindicatos operários e movimentos
camponeses, ONGs e organizações indígenas, movimentos de mulheres e associações
ecológicas, intelectuais e jovens ativistas. Longe de ser uma fraqueza, essa
pluralidade é uma das fontes da força, crescente e expansiva, do movimento.
Pode-se afirmar que o ato de nascimento do altermundialismo
foi a grande manifestação popular que fez fracassar a reunião da OMC em
Seattle, em 1999. A cabeça visível desse combate era a convergência
surpreendente de duas forças: turtles and teamsters, ecologistas vestidos de
tartarugas (espécie ameaçada de extinção) e sindicalistas do setor de
transportes. Portanto, a questão ecológica estava presente, desde o início, no
coração das mobilizações contra a globalização capitalista neoliberal. A
palavra de ordem central desse movimento, “o mundo não é uma mercadoria”, visa
também, evidentemente, o ar, a água, a terra, isto é, o ambiente natural, cada
vez mais submetido aos ditames do capital.
Podemos afirmar que o altermundialismo comporta três
momentos: 1) o protesto radical contra a ordem existente e suas sinistras
instituições: o FMI, o Banco Mundial, a OMC, o G8; 2) um conjunto de medidas
concretas, propostas passíveis de serem imediatamente realizadas: a taxação dos
capitais financeiros, a supressão da dívida do Terceiro Mundo, o fim das
guerras imperialistas; 3) a utopia de um “outro mundo possível”, fundado sobre
valores comuns como liberdade, democracia participativa, justiça social e
defesa do meio ambiente.
A dimensão ecológica está presente nesses três momentos: ela
inspira tanto a revolta contra um sistema que conduz a humanidade a um trágico
impasse, quanto um conjunto de propostas precisas – moratória sobre os OGMs
(Organismos Geneticamente Modificados), desenvolvimento de transportes
coletivos gratuitos –, bem como a utopia de uma sociedade vivendo em harmonia
com os ecossistemas, esboçada pelos documentos do movimento. Isso não quer
dizer que não existam contradições, fruto tanto da resistência de setores do
sindicalismo às reivindicações ecológicas, percebidas como uma “ameaça ao
emprego”, quanto da natureza míope e pouco social de algumas organizações
ecológicas. Mas uma das características mais positivas dos Fóruns Sociais, e do
altermundialismo em seu conjunto, é a possibilidade do encontro, debate,
diálogo e da aprendizagem recíproca de diferentes tipos de movimentos.
É preciso acrescentar que o próprio movimento ecológico está
longe de ser homogêneo: é muito diverso e contem um espectro que vai desde ONGs
moderadas habituadas ao lobby como forma de pressão, até os movimentos
combativos inseridos num trabalho de base militante; da gestão “realista” do
Estado (no nível local ou nacional) às lutas que colocam em questão a lógica do
sistema; da correção dos “excessos” da economia de mercado às iniciativas de
orientação ecossocialista. Essa heterogeneidade caracteriza, diga-se de passagem, todo
o movimento altermundialista, mesmo com a predominância de uma sensibilidade
anticapitalista, sobretudo na América Latina. É a razão pela qual o Fórum
Social Mundial, precioso lugar de encontro – como explica tão bem nosso amigo
Chico Whitaker – onde diferentes iniciativas podem fincar raízes, não pode se
tornar um movimento sociopolítico estruturado, com uma “linha” comum,
resoluções adotadas por maioria etc.
É importante sublinhar que a presença da ecologia no
“movimento dos movimentos” não se limita às organizações ecológicas –
Greenpeace, WWF, entre outras. Ela se torna cada vez mais uma dimensão levada
em conta, na ação e reflexão, por diferentes movimentos sociais, camponeses,
indígenas, feministas, religiosos (Teologia da Libertação).
Um exemplo impressionante dessa integração “orgânica” das
questões ecológicas por outros movimentos é o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) que, com seus camaradas da rede internacional Via
Campesina, é um dos pilares do Fórum Social Mundial e do movimento
altermundialista. Hostil desde sua origem ao capitalismo e sua expressão rural,
o agronegócio, o MST integrou cada vez mais a dimensão ecológica no seu combate
por uma reforma agrária radical e um outro modelo de agricultura. Durante a
celebração do vigésimo aniversário do movimento, no Rio de Janeiro em 2005, o
documento dos organizadores declarava: nosso sonho de “um mundo igualitário,
que socialize as riquezas materiais e culturais”, um novo caminho para a
sociedade, “fundado na igualdade entre os seres humanos e nos princípios
ecológicos”.
As cooperativas agrícolas do MST desenvolvem, cada vez mais,
uma agricultura biologicamente preocupada com a biodiversidade e com o meio
ambiente em geral, constituindo assim exemplos concretos de uma forma de
produção alternativa. Em julho de 2007, o MST e seus parceiros do movimento Via
Campesina organizaram em Curitiba uma Jornada de Agroecologia, com a presença
de centenas de delegados, engenheiros agrônomos, universitários e teólogos da
libertação (Leonardo Boff, Frei Betto).
Naturalmente, essas experiências de luta não se limitam ao
Brasil, sendo encontradas sob formas diferentes em muitos outros países, não
apenas no Terceiro Mundo, constituindo-se numa parte significativa do arsenal
combativo do altermundialismo e da nova cultura cosmopolítica da qual ele é um
dos portadores.
O fracasso retumbante da Conferência das Nações Unidas sobre
a Mudança Climática, de dezembro de 2009, confirma mais uma vez, para quem
ainda tinha dúvidas, a incapacidade de governos à serviço dos interesses do
capital em enfrentar o problema. Em vez de um acordo internacional obrigatório,
com reduções substanciais de emissões de gazes com efeito estufa nos países
industrializados – um mínimo de 40% seria necessário – seguida de medidas mais
modestas nos países emergentes (China, Índia, Brasil), os Estados Unidos
impuseram, com o apoio da Europa e a cumplicidade da China, uma “declaração”
completamente vazia, que faz senão reiterar o óbvio : precisamos impedir que a
temperatura do planeta suba mais de 2°C.
A única esperança é o movimento social, altermundialista e
ecológico, que se expressou em Copenhagen numa grande manifestação de rua – 100
mil pessoas – com o apoio de Evo Morales, cujas declarações anticapitalistas
sem ambiguidades foram uma das poucas expressões criticas na conferencia
“oficial”. Os manifestantes, assim como o Fórum alternativo KlimaForum,
levantaram a palavra de ordem “Mudemos o sistema, não o clima!” Evo Morales
convocou um encontro de governos progressistas e movimentos sociais em
Cochabamba (abril de 2010) com o objetivo de organizar a luta para salvar a
Mãe-Terra, a Pacha-Mama, da destruição capitalista.
Michael Löwy é sociólogo, brasileiro, radicado na França,
onde trabalha como diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche
Scientifique. Este artigo integra o no. 14 da revista Margem Esquerda e foi
publicado no site da Agência Carta Maior.
fonte: ecoagencia
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