A paisagem agreste, castigada pelo sol ardente do cerrado, guarda mais segredos do que podem supor os olhos do viajante, e a primeira impressão será sempre enganosa. Em meio a suas pedras, o Parque Nacional da Serra do Cipó abriga a maior comunidade vegetal em espécies por metro quadrado do mundo.
As rochas pontiagudas, que inspiraram no século
XIX o geólogo alemão Ludwig von Eschwege a batizar as montanhas com o nome de
Cordilheira do Espinhaço, ainda se espalham por todos os recantos, a vegetação
rala e seca reforça a sensação desolada das regiões áridas. Mas tudo não passa
de uma miragem. Por trás desse cenário de aparência inóspita, repousa um dos
mais belos santuários ecológicos brasileiros: ali onde já foi o fundo do mar,
há 1,7 bilhão de anos, a natureza hoje abriga um jardim muito especial.
Com seus campos pedregosos, cortados agora pelas águas mansas de
riachos que despencam em cachoeiras cristalinas, a Serra do Cipó, em Minas
Gerais, tornou-se nos últimos anos um surpreendente laboratório a céu aberto. O
filão de pesquisas para cientistas de todo o mundo é quase inesgotável. As
inscrições rupestres lá encontradas ainda desafiam os arqueólogos a seguir as
pistas da milenar presença humana e zoólogos já catalogaram na serra 131
espécies de aves, 56 de mamíferos e 35 de anfíbios, alguns sem similares em
outras partes do planeta. É na riqueza da flora, no entanto, que ela revela
todo o seu encanto. “Numa área de apenas 150km2 identificamos um
número de espécies vegetais equivalente à metade das que existem em toda a Inglaterra".
São mais espécies por metro quadrado do
que na própria Amazônia — cerca de 5 000, boa parte delas endêmicas, ou seja,
encontradas só naquela área — e de suas plantas já foram isoladas 150 novas
substâncias por químicos brasileiros. Localizado na porção sul da Cordilheira
do Espinhaço, urna sólida parede montanhosa que se prolonga até a divisa entre
a Bahia e o Piauí, o Parque Nacional da Serra do Cipó foi criado em 1984 e
engloba boa parte desse tesouro em sua área de 33 800 hectares, ou 338
quilômetros quadrados. Sua topografia, porém, remete a tempos bem mais
distantes, quando, onde estão estas cadeias de montanhas, imperava o oceano.
"A Cordilheira do Espinhaço já foi um pequeno mar,
possivelmente tão estreito quanto o Mar Vermelho, entre a África e a Península
Arábica". Na época, América do Sul, África, Índia, Oceania e Antártida
compunham um único supercontinente. "Quando essa placa continental começou
a se cindir, surgiram fraturas por toda a crosta terrestre. O oceano que
existia onde agora se encontra a cordilheira formou-se a partir da inundação de
uma dessas fendas". As marcas desse tempo em que o sertão era mar ainda
são nítidas na região. As rochas, inclinadas na mesma direção, são sinais das
forças tectônicas que elevaram uma cordilheira onde antes estava a paisagem
marinha. E o quartzito, formado pela consolidação das areias depositadas no
fundo do mar, predomina na composição do conjunto de pedras do Parque Nacional
da Serra do Cipó, hoje aboletado em altitudes que variam dos 900 até os 1 800
metros.
Esse berço rochoso que a exótica comunidade vegetal da
serra, que tem nas sempre-vivas sua estrela mais popular, deve muito de sua
personalidade. Graças ao solo, que praticamente não absorve água, as plantas de
lá desenvolveram sua característica mais marcante: uma extraordinária
capacidade de viver em ambientes hostis. Castigadas durante o dia pelo excesso
de luminosidade e de calor — que aquece as pedras até os 50°C — , por um frio
noturno capaz de baixar a temperatura dessas mesmas pedras a 0 grau e pela
escassez de água, elas aprimoraram o nível de especialização que garantiu sua
sobrevivência.
O primeiro obstáculo foi a falta de nutrientes. Como as chaves
sempre foram escassas na região e a pouca água trazida pelas precipitações do
verão escoa rapidamente devido à impermeabilidade do terreno, a flora teve que
se adaptar para aproveitar a umidade do ar como principal fonte de sustento. As
canelas-de-ema, por exemplo, da família das velosiáceas, desenvolveram uma
espécie de falso caule, composto pelas bainhas das folhas velhas que caem: ao
se ligarem ao ramo principal da planta, as bainhas vão formando uma camada
protetora para as raízes que nascem coladas ao caule. Encobertas por essa capa,
elas passam a acumular água como se fossem uma esponja. "Apesar da
aparência espessa, o caule real não tem mais do que um centímetro". Sua
prima, a Vellozia glabra, tem como dote especial minúsculos orifícios em suas
folhas (estômatos), situados em fendas que permanecem abertas quando há muita
água disponível e são fechadas quando o precioso líquido escasseia.
Mesmo buscando surpreendentes mecanismos de sobrevivência, as plantas
rupestres apresentam floradas belíssimas para quem tem oportunidade de aprecia-las.
"A multiplicidade de tipos e gêneros é tamanha que a Serra do Cipó está
sempre florida, não importa a época do ano. Há flores para a primavera, verão,
outono e inverno. São orquídeas, bromélias, margaridas, cactos, ipês,
quaresmeiras e, principalmente, as famosas sempre-vivas, aquelas flores secas
que não murcham nem perdem a cor, utilizadas na ornamentação de vasos e na
decoração de embrulhos de presentes.
As pinturas rupestres da Lapa Sucupira, uma enorme cavidade
esculpida nas rochas nos últimos 20 000 anos pelas enxurradas, não tiveram
tanta sorte. Embora fique nos limites do município mineiro de Santana do
Riacho, onde se encontra boa parte do território do parque nacional, o sítio
arqueológico está oficialmente fora de proteção. Ali, foi encontrado um
cemitério que pode ser o mais antigo do mundo, já que até hoje nenhum
arqueólogo encontrou um terreno reservado exclusivamente aos mortos que
remontasse a 15 000 anos. Nas suas paredes, os desenhos estampados através de
milênios registram imagens que vão dos veados e peixes cercados por figuras
antropomorfas, datados entre 8 000 e 7 000 anos atrás, até figuras humanas
menores e mais naturalistas, provavelmente feitas há 2 000 anos.
O mundo florido da Serra do Cipó é também a residência eleita de
uma impressionante quantidade de pássaros. Beija-flores ali não faltam.
Milhares deles se alimentam do néctar e, em troca da polinização, ajudam a
perpetuação dos vegetais. Alguns são particulares daquela região, como o
Leucochloris albicolis, de cor verde metálico e pescoço branco.Quase toda essa riqueza natural está hoje sob o manto protetor do
Parque Nacional da Serra do Cipó. A devastação não ameaça tanto como no passado
o paraíso onde os campos rupestres, cravados de pedra, a secura do cerrado e
as matas ribeirinhas convivem em harmonia. Com a beleza das mais de sessenta
cachoeiras e dos desfiladeiros de até 80 metros de profundidade em meio a suas
colinas, esse pequeno pedaço da serra que serviu de rota para os bandeirantes,
foi vasculhado pela ambição da corrida do ouro no século XVIII e calçado pelas
mãos dos escravos negros, pertence agora ao futuro.
FONTE: superabril/serradocipo.com.br/portalcipo/wikipedia
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